
A região
Contextualização histórico-geográfica
Texto de Flavia Silva Pinto e Moroni Henrique de Holanda Felippe
(estudantes de Licenciatura em Ciências Humanas, UFABC)
A cidade de São Bernardo do Campo é um município localizado na região metropolitana de São Paulo, situada historicamente de forma estratégica por ser a conexão entre a cidade de Santos e a Capital Paulista. São Bernardo do Campo é reconhecida por sediar grandes indústrias automobilísticas, configurando-se como uma das principais cidades industriais do Brasil. Este município conta com 409,5 km² de extensão, dos quais 278 km² pertencem à área rural, composta pelos distritos do Riacho Grande e de Santa Cruz [1] (imagem 1). Estes distritos serão o nosso objeto de pesquisa, com o intuito de compreender a complexidade de sua formação histórica.

[Imagem 1] Divisão Geográfica dos Bairros de São Bernardo do Campo (SP).
As pesquisas publicadas no site da Prefeitura de São Bernardo do Campo [2] serão utilizadas como principal base dos acontecimentos cronológicos apresentados nesta pesquisa. Além disso, estaremos utilizando como fonte histórica um dos principais documentos de consulta, publicado pela Prefeitura de São Bernardo do Campo, com financiamento de pesquisa da construtora Emparsanco e patrocínio de publicação da Volkswagen, em 2012, intitulado “São Bernardo do Campo 200 anos depois. A história da cidade contada pelo seus protagonistas”. Este documento apresenta uma linha do tempo da formação da cidade, bem como da região, a partir de um viés do “descobrimento”, ressaltando a suposta “missão” de São Bernardo do Campo na formação de São Paulo e do país, inserindo uma narrativa saudosista à visão colonizadora. É nítida esta concepção logo nas primeiras páginas do documento, redigida pelo então prefeito Luiz Marinho, que diz: “A história de São Bernardo do Campo, como legado, é uma bandeira alinhavada com os fios de milhares de histórias individuais. É a vida e obra de migrantes esperançosos, de famílias empreendedoras, de homens e mulheres que acreditaram nesta terra” (2012, p.5, grifo nosso).
Os sujeitos a qual o documento ressalta como formadores da cidade revelam, em contrapartida, justamente aqueles que a Prefeitura quer esconder da história do município: os povos indígenas originários da região – que hoje ficam restritos a pequenos espaços da região do Pós-balsa; os escravizados negros e seus descendentes – que têm as suas histórias mascaradas e apagadas em meio a imigração europeia; e a ampla população empobrecida. Dessa forma, criticamos o apagamento destes sujeitos propositalmente excluídos como formadores da região do Pós-balsa.
Desenvolvimento
A região do Pós-balsa teria, como registro de início das atividades econômicas, a criação da primeira serraria [3] em Capivari, no ano de 1881, de acordo com a fonte histórica analisada. No entanto, o documento da prefeitura não evidencia a presença dos grupos indígenas Guarani na Serra do Mar, que permaneceram nas matas como refúgio da colonização e como contato para a Terra sem Males [4] , local sagrado presente nesta cosmologia (Costa, 2018). Pertencentes à família linguística Tupi-Guarani, se dividem em três ramificações socioculturais. Os Guarani Mbyá são os que majoritariamente ocuparam a região da Serra do Mar, sendo um dos grupos indígenas que não tiveram a experiência de estarem submetidos aos regimes das encomiendas ou das missões jesuíticas (Ladeira; Azanha, 1988). Originários do Paraguai Oriental, os Mbyá iniciaram as migrações para o leste no início do século XIX, adentrando tanto no território argentino quanto no brasileiro, até a Serra do Mar. O antropólogo Léon Cadogan explica a motivação das migrações, atrelada à “finalidade de atravessar a ‘grande água’, além da qual, creem os Mbyá, encontra-se [a] ‘Terra sem Mal’” (ibidem, 1988, p. 16).
O início do interesse estatal brasileiro começou no governo imperial (1822-1889), que passou a implantar núcleos coloniais ao redor de São Paulo, a exemplo do que já era realizado em Curitiba e no Vale do Paraíba. Estes núcleos serviam como “[participação ativa] no processo de reorganização dos arredores paulistanos, que viam suas relações com a cidade modificadas e intensificadas, passando a se estruturar diretamente em função da cidade em expansão” (Langenbuch, 1971, p. 88). Devido a grande extensão territorial do núcleo colonial de São Bernardo, este foi subdividido em 15 linhas coloniais – sendo cinco na região do Pós-balsa, conforme a tabela abaixo (Imagem 2):

[Imagem 2] Fonte: Gimenez, 2019, p. 51.
Dessa forma, a partir de 1888, após a inauguração da linha colonial Rio Grande, famílias de imigrantes italianos e alemães passaram a morar na região do Pós-balsa para compor a linha colonial. Como consequência, houve o aumento da ocupação territorial para a produção de carvão vegetal, impactando no desmatamento que passou a ser realizado de forma intensa. A partir do século XX, a taxa demográfica do Riacho Grande e de Santa Cruz sofreu descompassos de acordo com alguns acontecimentos. Com a criação da estrada de ferro São Paulo Railway e a formação da represa Billings (1920), o núcleo urbano que se formou na linha colonial de Rio Grande ficou isolado mediante a desativação da Estrada Velha de Santos.
Apenas a partir dos anos 1940, com a introdução de carpas e tilápias na represa Billings, pelo Serviço de Piscicultura da Light, e com a inauguração da Via Anchieta (1947), que aproveitou trechos da Estrada Velha de Santos, a região do Pós-balsa teve aumento demográfico novamente, especialmente no centro do Riacho Grande, tornando-se, um ano depois, um distrito de São Bernardo do Campo.
Mediante o aumento demográfico, os grupos indígenas estabeleceram alianças com os posseiros em busca de proteção, ao passo que permitiram que eles fossem reconhecidos como “donos” das terras da região (Ladeira; Azanha, 1988). Em 1949, a família alemã Rochumback ocupou determinada área próxima a represa, utilizando da pesca de tilápias e carpas como subsistência, iniciando o grupo tradicional de pescadores do Pós-balsa. Essa colônia de pescadores somente foi oficializada no ano de 2008, com 500 pescadores associados. No entanto, em 2013, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) indicou a presença de metais pesados (cobre, cromo, mercúrio e zinco) nos sedimentos da represa e nas vísceras dos peixes pescados no entorno da colônia. Por conta disso, o fornecimento de água para o Pós-balsa passou a ser feito por caminhão pipa (Begalli et al, 2017). Vemos a dificuldade que é se estabelecer neste território, devido a contradição de estar cercado por água e não poder usufruir dela para sua própria subsistência.
A partir dos anos 1950, o loteamento do Parque Rio Grande foi adquirido por três proprietários: Abrahão Sabbá, Aldhemar Ferrero e Elias Aun, que iniciaram a construção de propriedades de médio a alto padrão na região. Por conta disso, houve uma valorização imobiliária que tornou a região visada para lazer de pessoas das classes médias altas. Mediante este novo público, casas de campo e chácaras tornaram-se comuns, além da utilização das águas da represa para turismo e lazer. Concomitantemente, o extrativismo que marcava economicamente a região foi finalizado, extinguindo a extração de madeira, o fechamentos das serrarias e o fim da produção de carvão vegetal.
O turismo se consolidou como uma importante atividade econômica para a região do Pós-balsa nesta época. Na década seguinte (1960), passaram a surgir bairros populares com baixa infraestrutura para suprir a mão de obra do lazer nos casarões perto da orla da represa, explicitando a desigualdade social nos próximos 30 anos, especialmente pelo início da rota do peixe em 1970, através de vários restaurantes de frutos do mar, e da inauguração da Rodovia dos Imigrantes, em 1976. A década de 1980 foi o ápice do lazer de alto nível na represa, com o funcionamento de restaurantes flutuantes, motos-náuticas e jet skis.
A especulação imobiliária do período também rompeu a relação entre os grupos indígenas e os proprietários mediante o loteamento das regiões circundantes do Parque Estadual da Serra do Mar, pressionando as Terras Indígenas Tenondé Porã e Krukutu (Ladeira; Azanha, p. 16).
A atividade turística descrita demonstra a criação de um não-lugar neste território. Ana Fani Carlos descreve como ocorre a formação do lugar:
O lugar é produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se realizam no plano do vivido, o que garante uma construção de uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade. Aí o homem se reconhece porque aí vive. (1996: 28)
Antes da formação deste pólo turístico, as relações entre pessoas e natureza estavam incrustadas neste espaço, mediante a ocupação das comunidades tradicionais remanescentes e pelos trabalhadores que ali se alojavam, cada grupo formava sua identidade atrelada a forma com que lidava com este meio. Enquanto o turismo é a negação desta relação, sobre o não-lugar gerado pela atividade turística:
A indústria do turismo transforma tudo o que toca em artificial, cria um mundo fictício e mistificado de lazer, ilusório onde o espaço se transforma em cenário, “espetáculo” para uma multidão amorfa [...]. Aqui o sujeito se entrega às manifestações desfrutando a própria alienação. Esses dois processos apontam para o fato de que ao vender-se o espaço, produz-se a não-identidade e, com isso, o não-lugar. (Carlo,1996:26)
O turismo no Pós-balsa gerou um novo lugar para os proletários que ali se alocaram para atender a demanda desta atividade econômica, mediante a interação destas pessoas com o espaço não espetacularizado. Ao mesmo tempo em que gerou não lugares, como exemplo restaurantes-flutuantes, casarões e espaços destinados a motos náuticas e jet skis, espaços que funcionam como palco, artificial, um espetáculo que exclui as complicações do território para criar uma experiência mais agradável ao turista. Apesar do turismo na região ser voltado para usufruto das águas, a atividade que mais impactou a deterioração da hidrografia do Pós-balsa foi a instalação da empresa Light, como é relatado no trecho a seguir:
Toda essa podridão (sistema hídrico) começou com a Light, atual Eletropaulo, que através de seus "testas de ferro" (políticos), durante décadas impediu qualquer iniciativa técnica que viesse beneficiar o abastecimento público, pois o que lhe interessava era um líquido que girasse as suas turbinas, não importando a qualidade do mesmo. A Light jamais foi contestada por qualquer ação governamental, apesar de seus descumprimentos ao Estatuto de Concessão (Castilho,1997,p. 63).
Com a desvalorização imobiliária e o agravamento da qualidade de vida, atrelados à deterioração do meio ambiente, o fenômeno de periferização (Santos, 2009) passou a ocorrer na região, aumentando a demografia da população mais pobre ao Pós-balsa. As tabelas abaixo comprovam tanto o aumento da população para a região (desde 2000 até 2022) (Imagem 3), quanto a média de renda na região, majoritariamente inserida nas classes de renda mais baixas (Imagem 4):


Conclusão
Interpretamos que o Pós-balsa é negligenciado pelo poder público em suas diversas esferas, sendo um território historicamente ignorado, embora o Estado considere sua única utilidade o lazer de alto padrão. Esta ignorância causou debilidades significativas refletidas na falta de dados sobre este território, visto que não encontramos pesquisas atuais feitas pelo poder público, apenas pesquisas de cunho acadêmico, atreladas, em sua maioria, à área das ciências naturais, focadas em questões ambientais, evidenciando uma lacuna para a compreensão deste território. Por isso, esta pesquisa, neste primeiro momento, se propôs a entender historicamente porque este território é negligenciado de tal forma.
Compreendemos que o município de São Bernardo do Campo entende as comunidades tradicionais como empecilho para o desenvolvimento, pois ao permitir a consolidação deste turismo e do extrativismo no Pós-balsa deu ensejo à predação do meio natural (Dias, 2017), fonte de subsistência desses povos. Além disso, no documento produzido pela prefeitura, as comunidades tradicionais são colocadas como figurantes nesta “peça de teatro” sobre a civilidade do homem branco nos trópicos.
As inúmeras negligências apresentadas nos levam a conclusão de que é necessário entender as tantas facetas deste espaço, o que hoje não é possível, devido a falta de dados sobre este território. É necessário compreender a construção histórica da ocupação e o porquê dela continuar até os dias de hoje e as nuances por ela produzidas. Parte das próximas ações do Programa Arte e Integração (Casco) neste território buscará produzir trabalhos científicos no campo das ciências humanas, não no intuito de substituir a produção de dados que deveriam ser gerados pelo pelo poder público, porém com a intenção de elucidar a complexa formação deste território.
Na Terra Indígena Tenondé Porã, demarcada apenas em 2012 pela FUNAI, há 824 pessoas, segundo o censo de 2009.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Begalli, Maíra; Freitas, Simone Rodrigues de; Mello, Leonardo Freire de. O gradiente de permissividade e restrição à ocupação (GPRO) como alternativa para o distrito do Riacho Grande, em São Bernardo do Campo - SP. COLÓQUIO – Revista do Desenvolvimento Regional - Faccat - Taquara/RS - v. 14, n. 2, jul./dez. 2017.
Carlos, Ana Fani Alessandri: O turismo e a produção do não-lugar. In: YAZIGI, Eduardo (org.). Turismo: espaço, paisagem e cultura. 2.ed. Sao Paulo: Hucitec, 1999. 241p. vol. 21 no. 3
Castilho, José Contreras. História do reservatório Billings e as bacias hidrográficas do ABC. [S. l.: s. n.], 1997.
Costa, Lidiana Cruz da. As diferentes representações do Território Guarani da Serra do Mar - SP. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2018.
Dias, Camila Loureiro. Direito dos povos indígenas e desenvolvimento na Amazônia. Revista de Estudios Brasileños, [s. l.], v. 6, ed. 11, p. 49-60, 15 jan. 2019. Disponível em: file:///C:/Users/DELL/Downloads/zeluiz,+20017-67426-1-PB.pdf. Acesso em: 17 ago. 2024.
Gimenez, Ana Carolina Ayres. Parada Billings. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Área de concentração: Paisagem e Ambiente. São Paulo, 2019, 274 p.
Ladeira, Maria Inês; Azanha, Gilberto. Os índios da Serra do Mar: a presença Mbyá-Guarani em São Paulo. São Paulo: Nova Stella Editorial, 1ª ed., 1988.
Langenbuch, Juergen Rkhard. Os núcleos de colonização oficial implantados no planalto paulistano em fins do século XXI. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n. 46, p. 88-106, 1971.
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Santos, Milton. Metrópole corporativa fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Edusp, 2009.